9 de julho de 2011 | By: Fidelis di Luigi

O LIXO LÁ DE CASA

Quero aproveitar um assunto belíssimo, que foi escrito pelo meu primo Eduardo Sarno, Ele é um conhecedor da historia da Familia Sarno. Essa história se repete com o que passei também lá em casa (Poções), são as mesmas coisa da casa de tio Corinto, irmão de meu pai Luigi.

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O LIXO LÁ DE CASA... NO SÉCULO PASSADO

por Eduardo Sarno


A casa a que me refiro, ou em epígrafe, se preferem, é a casa de meu pai, Corinto Sarno, em Poções , interior da Bahia, nos idos de 1950.

Alguns livros de memórias possuem títulos sugestivos, ou alusões a “parece que foi ontem” , ou, como publicou meu irmão Pedro Sarno “Foi tudo tão de repente...”, que decidi também incluir a indicação de que trata-se de um lixo do século passado.

Um fato que me marcou ocorreu em alguma data da década de 60, quando minha irmã Noemia – ela nega e não se lembra – tentou passar ferro em um saco plástico que embalava a camisa Ban-Lon, as primeiras de fibra sintética. Com este fato a nossa história do nosso lixo situa-se antes e depois do saco plástico.

Nossa casa tinha mil metros quadrados, ficava de esquina com a rua da Itália e o Beco do Cine Glória. Esta dimensão permitia que a casa tivesse sete quartos, um quintal de cima, com plantas e árvores frutíferas e um quintal de baixo, com galinhas e mais árvores frutíferas. Tinha também um depósito de lenha e carvão.

No fundo do quintal de baixo, em um dos cantos, debaixo de um grande coqueiro, ficava o monturo, o lugar onde se jogava o lixo.

A cozinha, com sua produção de cascas e restos orgânicos em geral era a principal fornecedora do monturo. As galinhas eram as clientes. Apesar de serem alimentadas com milho diariamente, as galinhas ciscavam continuamente não só o lixo mas todo o quintal, que ficava igual a um terreiro.

Dependendo do tipo de resto orgânico, ele ia para os porcos, que tinham um cercado próprio. Pelancas e ossos iam engrossar a comida do cachorro, no caso o feroz pastor da Casa Sarno.

O sanitário produzia um lixo reduzido, de papéis higiênicos, que eram incinerados no quintal sem maiores problemas.

Grãos, farinha, açúcar, sal e outros eram comprados em embalagens de papel. Na Casa Sarno tinha uma seção de secos e molhados, onde o produto era pesado já com o papel, que depois era destramente fechado, ficando o embrulho parecido com um grande pastel. O saco de papel, mais prático, só aparece algum tempo depois.

As latas de biscoito, banha, manteiga e outros eram reutilizadas para guardar mantimentos ou como utensílios de cozinha. As latas pequenas, nas mãos de artesãos, transformavam-se em lamparinas e outros artefatos.

A cabaça, inteira, comprida e com um furo era usada para bater leite e fazer queijo ou ricota. Pequena e cortada ao meio servia para tirar água do pote.

A bucha, uma cucurbitácea, depois de seca e retirada a fina casca, servia para a limpeza das panelas, juntamente com a fina areia, que vinha do caminho do açude velho. Assim, eram as panelas areadas. A bucha, para a higiene corporal no banho ainda hoje é encontrada.

O leite chegava da fazenda em grandes latões, não necessitando de embalagem própria. A borra do café coado servia de adubo, e do fogão à lenha se retirava a brasa que era usada para aquecer o ferro de passar, e a cinza para fazer sabão.

Os objetos em geral eram feitos de madeira, alumínio, cobre, latão, ferro fundido e metal zincado, todos de fácil conserto e reparo. As latas de querosene – usado na geladeira a gás - eram direcionadas para o uso na construção civil.

As garrafas de vidro eram poucas, e sempre reutilizadas para licor, azeite, vinagre, etc. Para se comprar cerveja ou refrigerante era obrigatório levar garrafas iguais para troca, ou deixar uma caução em dinheiro, para receber na devolução do casco. Mas sempre uma garrafa quebrada podia ser usada para guarnecer o alto de um muro contra visitas indesejadas.

Cordas e cordões eram feitos de croata, ou gravatá, uma bromeliácea. Os sacos de juta, usados para ensacar café e mamona no Armazém Sarno, eram usados como panos de chão.

No quintal de cima, afora alguns de cimento, a maioria dos canteiros era de caixotes de madeira, que meu pai trazia da loja e plantava principalmente cravos.

Periodicamente ele podava as videiras, e fazia mudas com as hastes maiores, indo a folhagem para o lixo. Era praticamente este o lixo orgânico proveniente das árvores frutíferas, não havendo necessidade de queimar nenhum resto de madeira no fogão. Um capitulo especial era o uso que fazíamos de quase tudo para brinquedos e brincadeiras.

Nas mãos hábeis de Adilson Santos os cabos de vassoura se transformavam em perfeitos arcos, e as penas das galinhas em adornos para as flechas. As pontas ele confeccionava com tampas de latas ou raros pedaços de vergalhão. As velhas baterias de carro eram desmontadas e o chumbo derretido, para fazer pesos e outras formas em fôrmas escavadas na madeira.

As cabeças de fósforo eram colocadas em um buraco em um tronco e estouradas com prego e martelo.

No quintal da casa de Miguel Lopes havia um caminhão velho que aos poucos fomos desmontando escondido, roubando as rolimãs para o jogo de gude e os rolamentos para fazer patinete, que tinha um suporte com o volante. As caixas de madeira da loja eram usadas para fazer carrinhos, com volante e eventual freio de pouca serventia, pois o impulso que os meninos davam ao empurrar o carrinho era desproporcional à potencia do freio e o declive da rua da Itália.

As tampas de refrigerantes, desempenadas, serviam para um jogo em que elas eram batidas contra a parede e ficavam próximas da “ficha” do adversário. As apostas eram pagas com carteiras de cigarro vazias.

Não só o descarte das casas, mas o da cidade também era reutilizado. A borracharia fornecia material para os badoques e solado para as alpercatas que usávamos.

Qualquer aro de metal ou madeira era logo usado para diversão, adaptado a algum tipo de carrinho ou simplesmente empurrado destramente com uma haste de ferro ou madeira. Até a cera das abelhas era usada para fazer dardos emplumados.

Era assim, uma vida sem perdas nem danos. O pesadelo do carro do lixo só apareceu anos depois, quando nosso futuro foi plastificado.
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